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quarta-feira, 3 de março de 2010

A vida da morte


Era final de uma tarde como ela mesma dissera há alguns anos. A cena era desconfortante. Nos corredores do hospital, enfermeiras chorando, ou cansadas, desiludidas. Na sala, bem pior. A família chorava. O médico explicava que fizera de tudo, tentara todas as técnicas, que mesmo com os sinais de melhoras aquilo acontecera, o agravamento do câncer. Porém, ela ficava apenas sentada na cadeira, sem sinais de tristeza. Se lembrava bem das palavras da avó no dia anterior, que incrivelmente estava apenas algumas horas atrás daquele instante. "É tão estranha essa minha melhora..." dissera sua avó. Apenas um sinal. Nada de melhora. Também se lembrava do que foi dito bem antes da doença, que a avó previra que morreria no final de uma tarde chuvosa e que também morreria calmamente, "no silêncio do sono", como ela dissera.
Vovó era uma pessoa maravilhosa. Sempre sorria. Sempre. Em velórios dizia que não gostava de choro. Se a pessoa que tivesse morrido estivesse viva não gostaria de ver os outros chorando por ela, gente até que não era próxima. Ela pensava assim. Mas não era isso que estava acontecendo na sua morte. Todos gostavam de vovó. Realmente foi uma perda grande. Todos choravam e lamentavam a sua morte. Todos, com excessão de uma menininha sentada em uma cadeira que balançava sua pernas. Tristeza? Ela não estava triste. Enfim chegou mamãe dizendo que precisam ir.
No carro, mamãe encontrava maneiras de dizer à uma criança de 4 anos que a sua avó morreu, que não voltaria mais. Tentava lutar contra as lágrimas, imaginando o que sua mãe, que acabara de morrer, faria ou diria no seu lugar. Mas ela se supreendeu. Quem tirou o próprio silêncio foi a criança, a menina sem tristeza.
- Vovó dizia que não queria ninguém chorando na morte dela. A própria filha dela quebrou o seu desejo. Não devia estar chorando mamãe...
A mãe tentou se recuperar do golpe. As lembraças da mãe lhe fazia mal. As frases. Os momentos de ajuda. De repente é como se tudo rodasse dentro de sua cabeça. Acho que você consegue imaginar o que quero dizer. Os flashes. Desde à infância até o que ela acabara de ver, o corpo da mãe morto, sem sua respiração acalmante. Pode parecer loucura, mas sua mãe a acalmava até nisso. Era incrível. Então ela começou a chorar mais. Parou o carro num canto e desabou. A filha, nesse momento olhou pra ela. Focou-a. E novamente falou...
- Mamãe, uma hora dessas vovó estaria revoltada.
A mãe não aguentou, sua filha não poderia deixar ela chorar em paz?
- Chega! A sua avó morreu!! Ela não tá aqui e eu vou chorar o tanto que eu quiser!
A menininha, calmamente, chegou perto da mãe, passou para o banco da frente e respondeu sem revoltas:
- Deve ser chato perder uma mãe. Ainda mais uma mãe como a vovó, que deveria ser uma das melhores do mundo. Mas a vovó mesmo dizia que ninguém morre. Todos vivem. Eternamente vivem. Ela dizia que todos nós temos amor. Cativamos as pessoas ao nosso redor com esse nosso amor. E elas vão se constituindo com o nosso amor. Eu e você temos muito do amor de vovó. Então ela não morreu. Ela está aqui. Dentro do meu e do seu coração. Ela não morreu mamãe. Ela está agora querendo enxugar suas lágrimas e a senhora não deixa.
A mãe, impressionada com o que a menina disse, por algum motivo conseguiu parar de chorar. Incrível. Ela conseguia sentir sua mãe ali, do seu lado, dizendo que não precisava choro. Que ela era uma pessoa forte, sempre foi, então não precisava desabar por causa de uma perda. A mãe enxugou as lágrimas, ligou o carro e continuou o trajeto para casa.
A menina, assim que entrou no seu quarto, pegou as fotos da avó. Todas que ela tinha. Tirou as fotos suas que tinha no seu mural, desfez tudo, colocou as da avó e contou quantas fotos tinha no total. Depois pediu que o irmão mais velho a ajudasse a fazer as frases que ela gostaria de colocar abaixo das fotos. Mas o irmão também estava chorando, desgastado com a morte da avó. Também brigou com a irmã. Empurrou-a e trancou-se no quarto. A menina foi forçada a desistir porque tinha que se arrumar para o velório da avó.
Todos estavam de preto, fardados com a mesma máscara de tristeza, indo para o velório de uma pessoa que detestava velórios. Mas novamente tenho a nossa ovelhinha negra, uma menina de 4 anos que amava demais a avó para quebrar seus desejos tantas vezes pedidos. Ela levou mini rosas brancas para a avó, as que esta própria mais gostava. A menina veio no carro ao lado do irmão.
- Você ainda está com raiva de mim?
- Eu não estou com raiva de você. Desculpa pelo o que eu fiz.
Então ele abraçou ela, e ela também o abraçou com força, afinal amava o irmão. Ele prometeu que quando chegasse em casa iria fazer as frases e colocar no mural de fotos da avó.
No velório, após colocar as flores no caixão da avó e lhe dar um beijo no rosto, a menina saiu e foi correr no canteiro de flores que havia no cemitério. Ela se sentou no banco. Logo depois chegou o irmão. Bem mais velho do que ela, o irmão já não chorava mais. Estava esgotado, tinha ajudado a mãe a enfrentar todos os conflitos para simplesmente se enterrar uma pessoa. Nesse mundo nem morrer sem dar trabalhos podemos mais. Abraçou a irmã. Ela lhe deu um beijo no rosto. E quebrou o silêncio.
- A vovó vai fazer falta pra gente. Apenas falta de corpo.
O irmão, sem entender, perguntou o que siginificava aquilo. Sua voz entregava o seu cansaço, seus olhos meio avermelhados e baixos mostravam a tarde estressante e as lágrimas que ele havia chorado. Mesmo assim, a irmã achava ele lindo. Sempre se gabou de ter um irmão tão lindo e fofo como ele, que sempre a tratava bem e que a amava.
- Tome cuidado com o que fala. Muito cuidado mesmo. A vovó não vai fazer falta apenas de corpo.
- Pra mim, sim - respondeu a menina - apenas de corpo. O amor dela, os seus ensinamentos, as suas frases, tudo está guardado em mim. Eu não deixei morrer isso, mas muita gente pensa que quando uma pessoa morre se vai pra sempre. A vovó dizia que não. Ela falou isso pra você ontem até. Quando estávamos no hospital.
- Você sempre surpreende a gente, Mah. Você tem uma mente mais avançada do que a minha e sempre me faz acreditar que a minha infância e inocência nunca vai morrer. Eu te amo, Mah! Muito!
E abraçou a irmã com tanta força que ela pediu pra ele soltá-la, tava prendendo a sua respiração.
A mãe e o irmão retornaram para a casa felizes. Com a avó no coração. E a meninha, bom, a avó já estava no coração dela.

MarinaV.

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